Importante portal de ciência dos EUA destaca o trabalho e a trajetória do cofundador da Tismoo com organoides de cérebro em pesquisas de TEA
Por Hannah Furfaro, do Spectrum News,
(versão em português: Francisco Paiva Junior)
É quase pôr do sol, Alysson Muotri entra em uma sala pequena e desordenada em seu amplo laboratório no Sanford Consortium for Regenerative Medicine, em La Jolla (bairro da cidade de San Diego), Califórnia, nos Estados Unidos. Uma incubadora do tamanho de uma minigeladeira abriga moradores incomuns — e ele quer apresentá-los:
“Esta é a fábrica de mini-cérebros”, diz Muotri, abrindo um sorriso. Seu colega segura uma bandeja de vidro contra a luz, e esferas cor-de-rosa do tamanho de um caviar se destacam.
As esferas são bolas 3D de células humanas, chamadas organoides cerebrais [ou minicérebros] — e Muotri passa seus dias pensando em maneiras de usá-las para estudar a complexidade do cérebro humano.
As células dessas esferas formam camadas, exatamente como os cérebros humanos, e mostram atividade cerebral, passando sinais elétricos de uma célula para a outra. Mas eles não têm a complexidade anatômica de um cérebro real. Eles também não podem pensar ou sentir — pelo menos ainda.
Muotri induz as células-tronco a se desenvolverem em esferas de cerca de 1 milhão de células dos tipos vistos no cérebro. Ele pretende entender como esses “quase-cérebros” amadurecem — e como seus padrões de atividade combinam com os de um cérebro humano. Na medida em que o fazem, ele espera usá-los para desvendar o que dá errado no autismo e nas condições relacionadas — e encontrar pistas para tratamentos.
Muotri criou seus primeiros organoides cerebrais em 2014, com células-tronco do pai de um menino autista. Dois anos depois, ele descobriu que os organoides feitos com células-tronco de crianças autistas têm uma dinâmica de rede diferente daquela dos controles neurotípicos. Ele também fez organoides de células que carregam o DNA neandertal e outros infectados pelo Zika vírus. Em julho, ele ajudou a enviar os primeiros organoides cerebrais ao espaço. O objetivo final, diz ele, é criar organoides que possam aprender.
Alguns críticos afirmam que Muotri é propenso a superestimar seus dados, mas a maioria de seus colegas admira sua determinação em forçar os limites dessa tecnologia, mesmo quando esse trabalho é controverso.
“Seu nome carrega muito peso na tentativa de fazer coisas com organoides que ninguém ainda fez”, diz Ferid Nassor, professor assistente de células-tronco e engenharia genética no Institut Sup’Biotech de Paris, na França. “Ele está realmente tentando forçar os limites do que pode ser feito”.
O otimismo de Muotri conquistou muitos céticos, de fato — e lhe rendeu vários prêmios e muitos milhões de dólares em doações.
Primeira luz:
Muotri estava preocupado em como as coisas funcionam desde sua infância. Ele se lembra de seu primeiro “pensamento profundo”, por volta dos 7 anos, quando tentou descobrir como funciona uma lâmpada: “minha ideia era que a lâmpada não estava lá para enviar luz, mas para sugar a escuridão”, diz ele.
Quando adolescente, em São Paulo, muitas vezes mergulhava na natureza, capturando vaga-lumes em jarras para “ter luz para sempre”. Ele criou uma sequência de fotos em time -lapse vaga-lumes piscando suas luzes — um dos muitos “projetos” que o fizeram receber o apelido de “o cientista” da família.
Como estudante de graduação na Unicamp (Universidade de Campinas), ele se destacou em biologia molecular, embora estivesse sempre interessado no cérebro — e na memória em particular. Mas o Brasil não era um celeiro de pesquisas em neurociência, então Muotri estudou câncer para seu trabalho de pós-graduação na USP (Universidade de São Paulo), aprendendo os fundamentos da biologia celular.
Enquanto estava na universidade, Muotri tentou desenvolver uma terapia genética tópica para o xeroderma pigmentoso, uma doença de pele rara que causa extrema sensibilidade à luz solar e muitas vezes leva ao câncer. O projeto exigia a confecção de modelos de pele em um prato. Ele viajou para o laboratório do biólogo Alain Sarasin na França em 2001 para aprender uma técnica que envolve a mistura de células-tronco da pele com “células alimentadoras” que fornecem suporte à medida que as células-tronco se multiplicam e produzem camadas de pele.
Mas ele logo percebeu que, se quisesse seguir a neurociência, precisaria deixar o Brasil completamente. Em 2002, como pesquisador de pós-doutorado, ele se juntou à equipe de Fred Gage, em San Diego, na Califórnia (EUA), um papa da neurociência do desenvolvimento.
“Ele gosta de estar lá fora no limite”, diz Gage, presidente do Instituto Salk de Estudos Biológicos, em La Jolla (San Diego), na Califórnia (EUA).
Dores crescentes:
A transição da pele para o cérebro teve uma curva de aprendizado íngreme para Muotri. Além disso, as células-tronco embrionárias estavam em oferta limitada, assim como o financiamento para pesquisa, por causa de uma lei federal de 2001 que proibia fundos públicos para estudos usando essas células.
No laboratório de Gage, o trabalho de Muotri foi confinado a uma sala especialmente equipada, apoiada por doadores privados. O plano era transformar células-tronco em neurônios, mas isso não era fácil.
“Ninguém sabia exatamente como fazer isso”, diz Muotri. Simplesmente manter as células-tronco vivas era um desafio.
Após três anos de esforços, Muotri relatou em 2005 que ele e seus colegas haviam transplantado células-tronco embrionárias humanas para o cérebro de embriões de camundongos. Eles encontraram neurônios humanos em funcionamento integrados em redes no cérebro dos camundongos recém-nascidos. [1]
Na pressa, Muotri perdeu um passo: não pediu a aprovação do conselho de revisão institucional do Instituto Salk, que examina a pesquisa humana em busca de danos potenciais. Ele recebeu uma advertência.
“Esta foi a minha primeira conexão com essas questões éticas”, diz Muotri. “Aprendi duas lições: havia muitas pessoas irritadas com esses experimentos e muitas pessoas felizes com eles”.
Entre as pessoas felizes, estava o biólogo celular Larry Goldstein, que estava convencido de que o trabalho de Muotri iria acelerar a área de células-tronco.
“Eu bati na trave algumas vezes; conheço muitos cientistas e sei quais são fora do comum em sua criatividade, motivação e seus insights — [Muotri] é um deles ”, diz Goldstein, diretor científico do Sanford Consortium for Regenerative Medicine.
Três anos depois, Goldstein recrutou Muotri para se juntar a ele na Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA), onde ele é professor.
Laços familiares:
Em seu novo laboratório, Muotri se afastou das células-tronco embrionárias e de seus problemas éticos, para um tipo chamado “células-tronco pluripotentes induzidas”, que são feitas usando pele e outras células do corpo como ponto de partida.
Em 2010, ele relatou que as células-tronco produzidas a partir das células da pele de pessoas com síndrome de Rett, uma condição relacionada ao autismo, geram menos neurônios do que as pessoas comuns. Uma entrevista na televisão sobre esse trabalho chamou a atenção de Andrea Coimbra, uma brasileira cujo filho, Ivan, então com 5 anos, tem autismo severo.
“Decidi dizer-lhe que passei a viver melhor depois de conhecer o seu trabalho e a sua pesquisa”, lembra Andrea. Após trocar e-mails por um ano, Andrea e Alysson se conheceram em uma conferência científica no Brasil — e se apaixonaram. Eles se casaram em 2016.
Ao conhecer Ivan, Muotri se tornou cada vez mais impelido em encontrar maneiras de traduzir seu trabalho em terapias para o autismo.
Organoides e células-tronco não são as únicas ferramentas que Muotri está usando para estudar o autismo e buscar terapias. Em trabalho não publicado, ele encontrou diferenças na atividade neuronal em organoides cultivados a partir de células com a mutação da síndrome de Rett. Após quatro meses de crescimento, quando os organoides são do tamanho de sementes de mostarda, suas células exibem um padrão elétrico semelhante ao observado em bebês prematuros [2]. Isso sugere, diz ele, que os organoides são bons modelos de desenvolvimento humano.
Alguns pesquisadores dizem que esta conclusão é precipitada.
“Encontrar atividade intermitente nas redes neurais não significa que seja um modelo de cérebro prematuro”, diz o neurofisiologista Sampsa Vanhatalo, que liderou o trabalho com bebês prematuros.
Muotri não deixa as críticas negativas o abalar. Não só isso, ele está de olho em um projeto ainda mais ambicioso: criar um organoide que possa aprender.
A idéia de um aprendizado organoide ou de ter consciência, todavia, provoca ceticismo de alguns especialistas.
Sugerindo que as esferas de células têm a capacidade de recapitular qualquer tipo de pensamento complexo passa dos limites, diz a especialista em organoides Flora Vaccarino, professora de neurociência na Universidade de Yale (EUA).
Mas outros dizem que estabelecer tais metas força os limites da ciência de maneira a melhorá-la.
“À medida que a ciência avança, deixa perguntas que fazem as pessoas pensarem, e fazerem uma pausa”, diz Hongjun Song, professor de neurociência da Universidade da Pensilvânia (EUA). “Isso é muito bom para toda a área”.
Enquanto outros debatem os méritos de sua ambição, Muotri está avançando. Um vídeo armazenado em seu celular apresenta um robô de 1 metro de largura, envolto em fios de neon, indo e voltando pela sala. Invisível, o manipulador de marionetes biológico do robô direciona todos os seus movimentos: os membros do robô se movem comandados por um computador que, por sua vez, recebe sinais de um minicérebro em uma incubadora.
O robô pisa aleatoriamente, muitas vezes esbarrando nas paredes, sugerindo que os sinais não são coordenados. Algum dia, diz Muotri, ele criará organoides que produzem sinais significativos. Com o feedback sensorial do robô (por exemplo, ao atingir um obstáculo), o organoide pode alterar seus padrões de disparo — “aprender”, isto é, direcionar o robô para desviar do obstáculo.
“Talvez ele tenha alguma carta na manga”, diz Nassor. “Eu acredito que se alguém puder realmente fazer algo assim, será no laboratório do Muotri”.
Tradução do original “Autism researcher Alysson Muotri’s audacious plans for brain organoids“, em inglês, publicado por HANNAH FURFARO na Spectrum News (EUA), em 12.agosto.2019.