Profissionais e especialistas têm evitado usar essa palavra para se referir a pessoas com diagnóstico da síndrome, dentro do espectro do autismo. Entenda o porquê.
Há algum tempo temos evitado usar no nosso dia a dia e nas nossas redes sociais o termo Asperger, mas muitas pessoas não sabem o porquê. Por isso, trouxemos uma tradução de um artigo do site Spectrum News, publicado em 19/04/2018, explicando algumas evidências de que o médico Hans Asperger — cujo nome foi dado à síndrome — tinha ligações com programas nazistas que matavam crianças com deficiência. Confira a seguir.
O artigo
“O médico austríaco Hans Asperger cooperou extensivamente com o regime nazista e pode ter enviado dezenas de crianças para a morte. Detalhes horríveis de seu envolvimento foram revelados ontem (18/04/2018) na revista científica Molecular Autism e serão contados em um livro inédito no Brasil, chamado Asperger’s Children: The Origins of Autism in Nazi Vienna (“Crianças de Asperger: As Origens do Autismo na Viena Nazista”, em tradução livre). Asperger foi um dos primeiros médicos a descrever o autismo, e suas décadas de trabalho com crianças contribuíram, mais tarde, para o conceito de um ‘espectro’ do autismo.
Historiadores levantaram questões sobre suas associações com o Partido Nazista e seu envolvimento nos esforços nazistas para matar crianças com deficiências. O livro e o artigo sugerem que Asperger encaminhou dezenas de crianças para uma clínica chamada ‘Am Spiegelgrund’, em Viena, onde médicos fizeram experiências com elas ou as assassinaram. Quase 800 crianças, muitas delas deficientes ou doentes, foram mortas lá. A equipe da clínica dava barbitúricos a elas (uma espécie de medicamento de ação hipnótica e sedativa), o que as levavam à morte por pneumonia.
Reagindo a essa notícia, alguns especialistas dizem que o termo médico homônimo ‘Síndrome de Asperger’ deve ser descartado definitivamente. O ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’ (DSM-5) já dispensou a síndrome de Asperger por outras razões, observa David Mandell, professor de psiquiatria da Universidade da Pensilvânia. ‘O termo síndrome de Asperger foi colocado em um caixão com o DSM-5, e talvez essa informação seja o último prego em termos de evitar que ela volte’, diz ele.
Outros são mais cautelosos, dizendo que a mancha no nome de Asperger não deve apagar suas contribuições para o entendimento do autismo. ‘Não acho que apagar a história seja uma resposta’, diz Herwig Czech, historiador de Medicina na Universidade Médica de Viena e autor do artigo publicado na revista científica Molecular Autism. ‘Acho que também temos que nos separar da ideia de que um epônimo é uma honra absoluta da pessoa. É simplesmente um reconhecimento histórico que pode, em alguns casos, ser incômodo ou problemático’.
Revendo a história
A síndrome de Asperger entrou oficialmente no léxico médico em 1981, quando a psiquiatra britânica Lorna Wing descobriu a tese de Asperger de 1944 e popularizou seu trabalho. Em 1992, a Classificação Internacional de Doenças (CID) incluiu a síndrome e, dois anos depois, o DSM-4 fez o mesmo.
O termo ainda está listado na CID-10, a versão atual do manual. Mas a CID-11, prevista para maio, incluirá a síndrome de Asperger dentro do diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), assim como o DSM-5. No entanto, o termo ainda é amplamente usado para se referir a alguém no extremo mais leve do Espectro do Autismo.
Asperger nunca foi membro do Partido Nazista. E por décadas, livros e artigos acadêmicos o retrataram como uma figura benevolente que salvou crianças com autismo dos centros de extermínio. Mas, em 2005, um historiador médico chamado Michael Hubenstorf revelou que Asperger tinha um relacionamento próximo com o proeminente médico nazista Franz Hamburger. No livro de 2015, NeuroTribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity (“Neurotribos: O Legado do Autismo e o Futuro da Neurodiversidade”, em tradução livre), o jornalista Steve Silberman também ligou Asperger a Hamburger, mas ele não encontrou um link para a eugenia nazista.
Novas revelações
A clínica infantil onde Asperger trabalhava foi bombardeada pelas tropas Aliadas e, durante décadas, muitas pessoas acreditaram que os registros clínicos haviam sido destruídos.
Em 2009, Czech foi convidado a falar em um simpósio comemorativo dos 30 anos de morte de Asperger, que aconteceria em 2010. Isso o inspirou a começar a investigar os arquivos do governo em Viena para obter detalhes sobre o pediatra — onde descobriu os registros clínicos bem preservados. Czech encontrou um arquivo do Partido Nazista que garantiu a lealdade de Asperger ao regime nazista, embora ele não fosse membro. Ele também encontrou palestras que Asperger deu, assim como seus arquivos de casos médicos e anotações.
Dois anos depois, a historiadora Edith Sheffer visitou os mesmos arquivos de Viena. Sheffer tem um filho com TEA e há muito tempo estava curiosa sobre Asperger, que ela achava ter uma reputação ‘heroica’. ‘Desde o primeiro arquivo que encontrei, vi que ele estava implicado no programa nazista que realmente matou crianças deficientes’, diz Sheffer, pesquisadora sênior do Instituto de Estudos Europeus, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ela é a autora do novo livro, que deverá ser lançado em maio.
Asperger descreveu o comportamento de crianças com autismo como estando em oposição aos valores do Partido Nazista. Por exemplo, uma criança típica interage com os outros como um ‘membro integrado de sua comunidade’, ele escreveu, mas um autista segue seus próprios interesses ‘sem considerar restrições ou prescrições impostas de fora’.
Os arquivos clínicos de Asperger descrevem crianças com deficiências e condições psiquiátricas em termos muito mais negativos do que seus colegas faziam. Por exemplo, os médicos de Am Spiegelgrund descreveram um menino chamado Leo como ‘muito bem desenvolvido em todos os aspectos’. Asperger o descreveu como ‘um menino psicopata muito difícil, do tipo que não é frequente entre crianças pequenas’.
Os colegas e mentores mais próximos de Asperger foram os arquitetos do programa de eugenia de Am Spiegelgrund. ‘Ele estava viajando nos mais altos escalões do sistema de matança, então eu realmente o vejo como mais do que apenas um passivo seguidor’, diz Sheffer.
Czech encontrou evidências sugerindo que Asperger transferiu pessoalmente pelo menos duas crianças para Am Spiegelgrund e serviu em um comitê que encaminhou dezenas de outras crianças que foram mortas lá. Não existem evidências de que Asperger tenha salvado crianças dessa clínica.
‘Ele poderia ter mandado mais crianças para Spiegelgrund? Sim, claro’, diz Czech. ‘Mas ele se absteve em todos os casos? Não.’
Maior organismo
Os arquivos também revelam o desenvolvimento das descrições clínicas das crianças examinadas por Asperger. Em 1937, antes da Segunda Guerra Mundial, Asperger era cauteloso na classificação. Porém, meses depois da anexação da Áustria pela Alemanha Nazista, em 1938, ele começou a descrever crianças com autismo como um ‘grupo de crianças bem caracterizado’, diz Sheffer. Três anos depois, ele começou a chamá-las de ‘crianças anormais’ e, em 1944, ele as descreveu como ‘fora do organismo maior’ do ideal nazista.
‘Por que ele adotou esse estilo de escrita? Acho que ele estava em busca de promoção’, diz Sheffer. Ela diz que a carreira de Asperger disparou durante os anos de guerra. Quando seus colegas judeus foram removidos de suas posições, ele ascendeu profissionalmente. Depois da guerra, no entanto, ele se descreveu em entrevistas como um opositor da ideologia nazista e chamou o programa de eutanásia de ‘totalmente desumano’, segundo Sheffer.
Por mais perturbadoras que sejam as revelações, elas são uma parte importante da pesquisa sobre o autismo, dizem os especialistas. As informações sobre a vida de Asperger eram ‘escassas’ nos anos 90, quando Ami Klin, diretor do Marcus Autism Center em Atlanta, tentou localizá-las. ‘Não havia investimentos e bolsas de estudos para o assunto’, diz ele. Klin faz parte do comitê editorial da revista científica Molecular Autism.
Agora que os detalhes vieram à tona, no entanto, as pessoas estão divididas sobre o caminho apropriado a seguir. Até mesmo os dois historiadores discordam. Ao contrário de Czech, Sheffer diz que as pessoas deveriam parar de usar o termo “Asperger”. Acabar com o uso do termo ‘honraria as crianças mortas em seu nome, bem como aquelas pessoas que ainda estão rotuladas com esse diagnóstico’, escreveu ela no The New York Times.
Algumas pessoas que receberam um diagnóstico da síndrome de Asperger dizem que é hora de enterrar o termo, mas pedem cautela. ‘Eu ficaria muito chateado se houvesse algum tipo de consenso de que as descobertas em si estavam contaminadas e precisavam ser postas de lado por causa da natureza da pessoa que contribuiu para elas’, diz Phil Schwarz, engenheiro de software em Massachusetts, que foi diagnosticado com TEA.
No mínimo, dizem outros, manter o nome pode nos ajudar a lembrar as lições desse passado sombrio.”