Você sempre foi tratado como uma pessoa comum. Frequentou a escola sem grandes problemas. Teve uma vida normal em família. Fez algumas poucas amizades ao longo do tempo. Cresceu e se tornou independente, como qualquer pessoa jovem adulta. Mas ninguém imaginava que a essa altura da vida seria surpreendido por uma grande descoberta: você é autista.
Uma história muito parecida com essa que acabamos de contar aconteceu com o francês Guillaume Paumier. Em 2013, aos 31 anos, Guillaume recebeu o diagnóstico de autismo. Mas por que tão tarde? “Após algumas dificuldades no trabalho meu parceiro decidiu compartilhar a sua suspeita sobre eu estar no espectro autista. Eu sabia pouco sobre isso na época, mas era uma hipótese que explicava muitas coisas, e parecia que valia a pena explorá-la”, conta o jovem em seu blog.
Após alguns testes veio o resultado. A partir daí, Guillaume passou a ver muito mais sentido em aspectos da sua vida que ele até então não compreendia muito bem. E sentiu necessidade de compartilhar isso com as pessoas, não apenas pela descoberta tardia da condição, mas para demonstrar como cada pessoa pertencente ao espectro é única em suas características. O relato de Guillaume foi traduzido para o português e pode ser lido na íntegra em seu blog. Abaixo reproduzimos e destacamos em negrito os trechos que mais nos chamaram a atenção.
Minha vida como autista e wikipedista
“[…] meus pais contam que, embora eu não entusiasmasse com a ideia de ir à escola durante a semana, eu sempre pedia para ir aos sábados, porque a maioria das crianças não estava lá. Não é que não gostasse delas, mas a escola ficava muito mais silenciosa do que durante a semana, e eu tinha todos os brinquedos só para mim, eu não precisava interagir com as outras crianças, dividir os lápis, nem a sala. Eu podia fazer qualquer coisa sem ter que me preocupar com as outras crianças. Naquele momento eu ainda não sabia, mas quase 30 anos se passariam até que eu olhasse para trás e pudesse entender que tudo fazia sentido.
Agora eu tenho 32 anos, e muitas coisas mudaram. Há dois anos, após algumas dificuldades no trabalho, meu parceiro decidiu compartilhar a sua suspeita sobre eu estar no espectro autista. Eu sabia pouco sobre isso na época, mas era uma hipótese que explicava muitas coisas, e parecia que valia a pena explorá-la.
Sim, essa questão havia sido levantada algumas vezes antes, mas sempre em tom de piada, exagerando o meu tipo de comportamento. Eu nunca achei que aquela etiqueta pudesse ser aplicada no meu caso. Um dos problemas é que o autismo é apresentado de uma maneira muito uniforme na cultura popular. Filmes como Rain Man mostram autistas com síndrome de savantque, apesar de terem habilidades extraordinárias, vivem em um mundo completamente diferente, e algumas vezes não falam. O espectro autista é muito mais diverso do que esse tipo de exemplos estereotipados.
Após ter começado a pesquisar sobre o assunto, e a ler livros sobre autismo e biografias escritas por pessoas autistas, eu percebi o quanto encaixava comigo.
Demorou um pouco para que eu obtivesse uma confirmação de especialistas. Mas, após alguns testes, quando eu a recebi, muitas pessoas ainda tinham as suas dúvidas. A questão que surgiu repetidamente foi “Mas como é possível que não tenha sido detectado antes?” Geralmente o autismo é identificado em idades mais jovens, mas parecia que durante quase toda a minha vida eu havia conseguido me disfarçar de “neurotípico”, ou seja, de alguém que possui um cérebro cujo funcionamento é similar ao da maioria das pessoas.
[…]
Uma boa analogia para entender o que significa ser autista em um mundo de neurotípicos, é olhar para o Sr. Spock, da série original Star Trek; filho de um pai Vulcano e uma mãe humana, tecnicamente o Spock é meio humano, porém o seu lado Vulcano é o que mais se destaca quando ele interage com o resto da tripulação da Enterprise. […] Como Vulcano, a vida do Spock é regida pela lógica. Embora ele sinta emoções, elas são profundamente reprimidas. O padrão do seu discurso é desapegado, quase clínico.Devido à sua perspectiva lógica e utilitarista, frequentemente o Spock parece indiferente, sem coração, ou rude com os seus companheiros tripulantes.
As características do Spock se parecem às do autismo de muitas maneiras […] o filtro de percepção do Spock o impede de entender as decisões humanas baseadas em emoções. Essas ações lhe parecem tolas ou insensatas, porque o Spock as interpreta através da sua lente lógica. Faltam-lhe base cultural, normas sociais e premissas não ditas compartilhadas inconscientemente pelos humanos.
[…]
Pessoas autistas são caracterizadas por muitos traços diferentes, mas o mais presente é a cegueira social: nós temos dificuldade em ler as emoções das outras pessoas. […] Frequentemente entendemos as coisas literalmente porque não contamos com o texto subliminar: para nós é difícil ler as entrelinhas.
[…]
Acho que o Spock só foi capaz de construir relações ao longo do tempo porque as pessoas eram conscientes da sua diferença, e aprenderam a entendê-la e a abraçá-la. O Spock também aprendeu muito com os humanos ao longo do caminho.”