A grande maioria das pessoas no Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) apresenta disfunções sensoriais. Para te ajudar a entender esse assunto, nossa equipe técnica buscou os estudos mais recentes para trazer até você dados clínicos e informações sobre a necessidade de terapias adequadas, os mecanismos e relações entre o autismo e as disfunções sensoriais.
A incidência das disfunções sensoriais em autistas varia entre 45% a 96%. Tais disfunções são clinicamente únicas, assim como são os casos das pessoas no TEA. Aliado à variedade de casos e à complexidade que cada um apresenta no espectro, esse cenário torna o diagnóstico um grande desafio. Além disso, ainda são poucos os profissionais de saúde que conhecem e consideram a importância e o impacto dos problemas sensoriais no desenvolvimento e na educação de crianças.
De acordo com alguns estudos, entre 56% a 80% das pessoas no TEA apresentem sinais de hipersensibilidade sensorial (HS), também chamada de defensividade sensorial. Diferente das pessoas típicas, pessoas com defensividade sensorial experimentam os estímulos sensoriais de formas negativas e distintas entre si. Uma sensação considerada normal e tolerável para uma pessoa neurotípica pode ser considerada como estímulo aversivo para um autista, a ponto de gerar angústias e sofrimentos incapacitantes.
Estudos sugerem que parte significativa das manifestações clínicas do TEA têm relação direta ou indireta com disfunções sensoriais, principalmente nos casos de HS, tornando-a parte significativa de disfunções de comunicação e socialização no TEA. Crianças com disfunções sensoriais táteis na boca ou gustativas, por exemplo, podem apresentar atraso de fala e/ou desenvolver problemas dietéticos. Uma pessoa que é hipersensível a estímulos auditivos, olfativos e visuais se sentirá desconfortável de uma forma tão grande que muitas vezes preferirá permanecer em casa ao invés de andar por uma cidade, visitar familiares ou ir a eventos com várias pessoas.
Estímulos táteis considerados aversivos podem reprimir a socialização de forma considerável ou desencadear estereotipias. Em alguns casos, movimentos repetitivos podem ser uma forma de buscar alívio de sensações aversivas causadas pela HS. No entanto é importante esclarecer que nem todas as disfunções sensoriais resultam em problemas comportamentais, e que movimentos repetitivos também ocorrem na ausência de hipersensibilidade sensorial.
Os efeitos negativos de HS em pessoas com autismo são tão significativos que a HS é um fator de estresse e comprometimento não só para os pacientes, mas também para suas famílias. Um estudo comparando crianças no TEA com HS e sem HS mostrou que essa característica tem efeito negativo superior e estatisticamente mais relevante do que prejuízos funcionais (como problemas cognitivos, de socialização e comunicação). Em pessoas sem nenhuma condição psiquiátrica, a HS por si só já foi considerada fator de risco significativo de baixa qualidade de vida familiar.
Fatos como esses nos mostram a necessidade de identificar e tratar de forma precisa as pessoas com disfunções sensoriais, em especial HS. Profissionais de Terapia Ocupacional e Fonoaudiologia atualizados e com boa formação técnica/acadêmica podem oferecer grande contribuição às pessoas nessa condição, através de terapias individualizadas. Estudos já mostraram que intervenções sensoriais desenvolvidas por terapeutas ocupacionais em crianças no TEA trazem um ganho significativo de socialização e melhoria dos cuidados pessoais.
Alguns cientistas têm se dedicado a entender as disfunções sensoriais no TEA, o que ocorre no sistema nervoso e os genes relacionados. Já se sabe que pessoas com disfunções sensoriais apresentam alterações em substância branca do sistema nervoso central (que representa as fibras nervosas que conectam os neurônios e estabelecem suas ligações) de formas diferentes das pessoas no TEA, que não manifestam algum tipo de problema sensorial.
Apesar dos avanços nas pesquisas, pouco se sabe sobre a genética das disfunções sensoriais no TEA. Recentemente, alguns genes foram relacionados à hipersensibilidade sensorial e autismo em modelo animal. Genes envolvidos no TEA, como MECP2, GABBR3, SHANK3 e FMR1, foram associados a problemas na discriminação tátil e hipersensibilidade tátil. Para chegar a essa conclusão, pesquisadores da Universidade de Harvard alteraram camundongos geneticamente, de forma específica no sistema nervoso central ou apenas nas terminações nervosas da pele no sistema nervoso periférico. Esses animais foram submetidos a testes comportamentais e sensoriais. Os resultados mostraram que animais sem os genes MECP2 ou GABBR3 nos nervos da pele apresentavam ansiedade e déficit de interação social. Esses dois genes participam de um processo chamado “inibição pré-sináptica”, importante nas interações neuronais para evitar estimulações excessivas desreguladas nos neurônios.
Outro dado interessante desse estudo é que animais submetidos às mesmas alterações genéticas em MECP2 e GABBR3, mas na fase adulta, não apresentaram problemas de socialização ou ansiedade, apesar de demonstrarem os mesmos problemas sensoriais. Isso sugere (e colabora com outros dados clínicos) que um padrão sensorial tátil saudável na infância é importante para o desenvolvimento cerebral e o aprendizado de interações sociais e comportamentais.
As disfunções sensoriais prejudicam o modo como essas pessoas interpretam o mundo físico ao seu redor e podem alterar o curso de uma vida toda dependendo de como forem as experiências com o mundo. Entender essas condições de saúde que afetam pessoas no espectro do Autismo é muito importante para a qualidade de vida não só delas, mas também de seus familiares e da sociedade como um todo.
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